Amkoullel, o menino fula
Marina de Mello e Souza
O livro de Hampâté Bâ nos leva para o Mali do início do século XX com rara sensibilidade narrativa.
O livro narra parte da saga de uma família, contada por um de seus mais eminentes membros, que transitou entre o mundo tradicional de seu povo, um grupo fula do atual Mali, e o mundo do colonizador francês. Neste, ele se destacou como representante de seu povo, como membro de comitês científicos, como estudioso da cultura oral malinense e defensor do seu papel no interior dessas sociedades. Aqui narra suas memórias de menino e, antes disso, o conhecimento que adquiriu acerca de seus antepassados, ouvindo atento os mais velhos nas reuniões que participou em vários pátios, na casa de muitas pessoas, em situações diferentes. À medida que nos conta os episódios, com o talento de um grande narrador (que teve em sua tradutora para o português uma colaboradora à altura), desvenda os valores, os comportamentos, as regras, as maneiras de se organizar, as injunções políticas dos grupos entre os quais viveu, na região do delta interior do Níger.
É nessa região que se desenvolveram algumas das mais brilhantes sociedades sudanesas, articuladas aos reinos do Mali, que em 1591 foi destruído por exércitos vindos da região do Marrocos, e ao reino de Songai, que sucedeu àquele e cedeu lugar a outras estruturas políticas, fortalecidas pelo comércio com o atlântico. Os pais e avós de Hampâté Bâ sofreram as conseqüências das guerras religiosas do século XIX, na esteira das quais se formaram vários estados islâmicos teocráticos, mas é a presença dos colonizadores franceses a força externa desagregadora mais presente na sua narrativa.
Quanto a esta, tem a força das tradições milenares e do talento de alguns poucos. Talvez o leitor que desconheça completamente o mundo sudanês da região do rio Níger se sinta perdido em meio a um mundo tão radicalmente diferente. Mas talvez possa compreendê-lo melhor do que por outra via qualquer, devido à força da sensibilidade como meio de comunicação universal. No meu caso, senti pulsar a vida de situações que havia abordado pelo viés do conhecimento intelectual, como disputas de poder entre diferentes clãs, padrões de comportamento e maneiras de viver o dia-a-dia. Os cartões postais anexados ao livro completam o quadro, dando exemplos visuais do que a narrativa descreve. Este é um livro cuja leitura dá prazer e que abre os horizontes.
Amkoullel, o Menino Fula
Amadou Hampâté Ba
Tradução Xina Smith de Vasconcellos
Editora: Casa das Áfricas/Palas Athena (372 págs.)

16.09.2003   Folha de São Paulo