domingo, 14 de abril de 2013

 

Revista Argumento, Ano 12, Número 19 (2011)
disponível em: http://www.anchieta.br/unianchieta/revistas/argumento_new/pdf/argumento19.pdf

Tradição oral, memória e literatura africana: uma análise do livro
Amkoulleu, o menino fula de Amadou Hampatê Bâ
Márcia Moreira Pereira 5
Rosemeire da Silva Vargas 6
Resumo: Neste artigo analisou-se a obra autobiográfica de Amadou Hampâté Bâ, Amkoulleu,
o menino fula, na qual o autor narra a sua infância, destacando-se a importância das
narrativas baseadas na memória dos fatos para os povos de tradição oral. A partir disso, fez-se
uma reflexão sobre a cultura africana e a forma sistemática de se treinar para a arte de narrar
desde a infância.

Palavras chave: Tradição oral, memória, Amadou Hampâté Bâ, literatura africana
Abstract: This article analises the autobiographical work of Amadou Hampâté Bâ,
Amkoulleu, o menino fula, in which the author recounts his childhood in order to points out
the importance of narratives based on memory.
Keywords: Oral tradition, memory, Amadou Hampâté Bâ, African literature

O presente trabalho faz uma análise da narrativa literária Amkoullel, o menino fula, do
escritor africano Amadou Hampâté Bâ. Trata-se de uma história de cunho autobiográfico,
baseada na memória dos fatos, considerando que a tradição oral sempre ocupou posição de
destaque nas sociedades africanas, se constituindo assim como um dos principais meios de
transmissão de conhecimento de geração para geração.
O encantamento, a poeticidade, a criatividade e a competência presentes na linguagem
de Amadou Ampâté Ba – que se dedicou à coleta de narrativas, transformando-as em seus
textos literários –, fazem dele não apenas um dos maiores nomes da literatura africana, mas
também um verdadeiro repertório vivo da tradição oral, além de defensor fervoroso da
5
 Mestranda em Educação, na Universidade Nove de Julho (UNINOVE), São Paulo, Brasil. Email:
marcia.moreirapereira@gmail.com
6
 Pós-graduada em Letras, na Universidade Nove de Julho (UNINOVE), São Paulo, Brasil. Email:
rosesilva.vargas@yahoo.com.br49
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permanência e preservação desta tradição.
A questão do negro na escola e a lei 10.639
Com a aprovação da lei nº 10.639, de 10 de janeiro de 2003, que torna obrigatório o
ensino da História e cultura Afro-Brasileira na Educação básica, considera-se relevante tratar
desse tema, na medida em que a educação brasileira revela-se limitada quanto ao tema da
literatura e cultura africanas. O que, em geral, se evidencia é a associação que se faz do negro
à sua condição de escravo, como se pode verificar nos livros didáticos. Considerando que no
Brasil, segundo o censo do IBGE, (MEC, 2004, p.5), as estatísticas mostraram que 45% da
população brasileira são compostas de negros, estes dados não são suficientes para eliminar
ideologias que persistem em privilegiar e valorizar a cultura européia ignorando outras, em
especial a africana. Neste cenário verificamos que a Instituição escolar legitima a perpetuação
da reprodução social das classes dominantes, na medida em que, quando se faz a seleção de
obras literárias, seja qual for o gênero, o negro não se vê representado, tendo sua identidade
negada e aparecendo somente com a imagem estigmatizada e negativa do escravizado,
vivendo à sombra de uma cultura eurocêntrica.
A lei 10.639, sancionada em 2003 pelo Presidente da República, que altera a LDB (Lei
de Diretrizes e Bases, 1996) institui que é obrigatório no ensino fundamental e médio, público
e particular, o ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira. Trata-se de uma
legislação que abre caminho para várias a divulgação da cultura africana – que tem forte
representatividade em nossa cultura – nas escolas, em cujas salas de aula se verifica
pouquíssima ou nenhuma abordagem. Assim, a obrigatoriedade dessa lei faz com que
tenhamos um novo olhar sobre essa cultura e a história africanas e afro-brasileiras. Sabemos 50
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que, no ambiente escolar, o conteúdo das aulas, principalmente no ensino de história, enfatiza
ama visão eurocêntrica da história, dando pouca importância à vertente afrocêntrica.
A rica cultura africana, quando trazido para a sala de aula, não só reconstrói nos alunos
e nos professores uma imagem positiva daquele continente, como também eleva a auto-estima
dos alunos afrodescentes, os quais vivem no dia-a-dia a cultura africana, mas ao chegar à sala
de aula se deparam com conteúdos pedagógicos que revelam outra realidade, isto é, uma
realidade voltada para os conteúdos de fundo eurocêntrico.
A referida lei, portanto, vem para valorizar a diversidade cultural, que é uma das
principais características do nosso país, segundo SOUZA E CROSO (2007, p. 21):
com a lei 10639/03 a escola aparece como locus privilegiado para agenciar
alterações nessa realidade, e é dela a empreitada de acolher, conhecer e valorizar
outros vínculos históricos e culturais, refazendo repertórios cristalizados em seus
currículos e projetos pedagógicos e nas relações estabelecidas no ambiente
escolar,promovendo uma educação de qualidade para todas as pessoas.
A referida já é obrigatória, mas é necessário salientar a importância da formação dos
professores, muitos deles ainda com o estigma da educação eurocêntrica, sem preparo para
ministrar aulas com conteúdos multiculturais. De fato, como afirma Marise Santana (2008, p.
85), infelizmente alguns docentes ainda possuem uma visão pedagógica monocultural:
a cultura como ciência universalizadora é incompatível com as ideias da democracia,
cidadania, igualdade, respeito a diversidade cultural, impossibilitando que os
docentes recebam as camadas populares com a qualidade requerida pela
heterogeneidade presente no espaço escolar.
Também para FERNANDES (2005), nossa diversidade cultural é tão vasta, que o
correto seria falar culturas brasileiras e, não, em cultura brasileira, sendo que o autor ainda
alerta para a necessidade de uma forte mudança nos livros didáticos, em conformidade com
nossa realidade afro-cultural e com a própria lei sancionada. É importante, portanto, que a lei
não caia no esquecimento, sendo sua aprovação um pequeno passo diante das mudanças que 51
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devem ocorrer no cotidiano escolar, a fim de que, partindo daí, realmente possamos afirmar
que vivemos numa comunidade multirracial, multiétnica e multicultural.
A relação escola/professor/aluno deve, desse modo, ser uma relação de cumplicidade,
o sentido de todos darem os primeiros passos para se conhecer a realidade brasileira,
valorizando-a e, assim, aumentando a auto-estima dos alunos que compartilham, direta ou
indiretamente, dela. Somente assim, esses mesmos alunos poderão se reconhecer como
sujeitos de suas próprias histórias.
Nesse sentido, ao instituir o conhecimento das culturas e da história africana por meio
da Lei nº 106390, busca-se, a reparação e o ressarcimento frente a todos os descendentes
africanos que ao longo da história do Brasil foram marcados por estigmas, preconceitos e
discriminação como também a um não pertencimento social. A grande questão a ser levantada
é o fato de que, a sociedade brasileira como um todo, não recebeu o devido preparo em sua
formação inicial para lidar com a diversidade, pois segundo Munanga:
essa falta de preparo, que devemos considerar como reflexo do nosso mito de
democracia racial compromete, sem dúvida, o objetivo fundamental da nossa missão
no processo de formação dos futuros cidadãos responsáveis de amanhã. Com efeito,
sem assumir nenhum complexo de culpa, não podemos esquecer que somos
produtos de uma educação eurocêntrica e que podemos em função desta, reproduzir
consciente ou inconscientemente os preconceitos que permeiam nossa sociedade.
(MUNANGA, 2005, p.15)
África e tradição oral: a obra de Amadou Hampâté Bâ
Segundo Giordani (1985), a mentalidade européia e as sociedades não européias não
apresentam grande interesse no que se refere à tradição oral na medida em que o continente
africano, em especial a África negra, seriam incapazes de conceber uma educação formal
devido à ausência de material escrito. Sendo assim, percebemos que os estudiosos ainda têm 52
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certa relutância em aceitar a oralidade com a mesma confiança que se concebe a escrita. No
entanto, a viagem literária que propõe a obra Amkoulleu, o menino fula nos remete a uma
desconstrução de conceitos pré-estabelecidos e internalizados nas relações sociais na qual
grupos hegemônicos, historicamente só legitimam o que é por eles produzidos e que tem
servido para a manutenção do status quo baseados na exclusão e na supremacia de
determinados grupos e na subalternização de outros.
O conhecimento que temos sobre a tradição e literatura africana se resume em grande parte
a lendas e mitos atrelados muitas vezes à religião. No entanto quando nos aprofundamos
nos estudos construímos um novo conceito no que se refere à própria religião, ciência
natural, arte história, divertimento, enfim um vasto aprendizado que vai se compondo em
um universo onde a tradição oral é considerada a grande escola da vida.
Há tempos, observando a história do ocidente no que se refere a obras literárias, nossa
cultura letrada considera legítima apenas a palavra escrita prevalecendo sempre sobre a
cultura oral. Sempre existiu certo preconceito advindo de alguns teóricos e críticos elitistas
em aceitar a oralidade com a mesma confiança que se concebe a escrita. Para estes teóricos
esses textos não se caracterizariam como obras literárias por não possuírem embasamentos
documentais, porém: “o fato de nunca ter tido uma escrita jamais privou a África de ter um
passado, uma história e uma cultura” (BÂ, 1982, p.175). Percebemos atualmente a
existência de alguns trabalhos históricos embasados na tradição oral que em conjunto com
fontes documentais surgem como um complemento a mais de fonte de pesquisa sendo
assim, um fator positivo na medida em que se tratando da história da África, a oralidade
ainda desempenha um papel insubstituível.
Para Bâ (1982), os primeiros arquivos ou bibliotecas do mundo foram o cérebro dos 53
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homens. Com essa afirmação já percebemos de inicio que o autor objeto de nosso estudo foi
um fervoroso defensor da tradição oral e do cultivo de sua transmissão às novas gerações. No
entanto, quando falamos em cultura oral africana, tendemos a pensar em oralidade como algo
que transcende a própria escrita, e é tratada por Bâ, como o poder da palavra que mora na
narrativa e nunca se acaba.
 O livro em causa trata de temas diversos como: família, tradição, a importância da
mulher, poligamia, religião, problemas de questões sociais, colonização, guerra, fome, enfim,
uma grande dimensão de temas sob a ótica da cultura africana, em especial na região das
savanas, no Mali. No entanto, vamos nos ater na questão que é de fundamental importância
para a perpetuação da transmissão do conhecimento que são as narrativas orais e a técnica de
memorização.
É sobre esta perspectiva que analisamos a obra Amkoulleu, o menino fula, de Amadou
Ampâté Ba, no sentido de perceber a importância e o valor das narrativas para os povos de
tradição oral na qual tece relatos de sua autobiografia guardados na memória. Mas, afinal, o
que são estas narrativas?
São frutos da vivência pessoal em que o narrador em questão transporta para a escrita
evidenciando a importância da oralidade, onde o texto será conduzido por sua memória
pessoal, na qual assume a postura de um contador de história bem característico da tradição
africana. É, portanto neste contexto que Bâ relata com minúcias a narrativa baseada na
memória dos fatos na qual ele tem a preocupação de transformar o discurso oral em
conhecimento escrito repleto de detalhes. A narrativa se dá em sua totalidade, pois para o
autor resumir é o mesmo que escamotear, ou se narra um acontecimento em sua integridade
ou não se narra. Essa é uma das características da tradição oral que é considerada a grande 54
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escola da vida a ser transmitida de geração em geração. Segundo ele, o que se encontra por
detrás do testemunho é o próprio valor do homem que faz o testemunho, o valor da cadeia de
transmissão da qual ele faz parte, a fidedignidade das memórias individual e coletiva e o valor
atribuído à verdade em uma determinada sociedade, sendo assim, existe para ele uma forte
ligação entre o homem e a palavra.
É o que afirma também Orlandi (2001) a respeito da palavra, pois para ela: “toda
palavra é um ato social, com todas as suas implicações: conflito, reconhecimentos, relações de
poder, constituição de identidade” e, portanto, todos estes fatores estão presentes em muitos
momentos do livro, a começar coma a saga de sua família.
É a partir das narrativas protagonizada por Amkoullel (apelido que foi dado a Hampâté
na infância), que vamos conhecendo como funcionam os relacionamentos familiares, que ele
detalha com grande competência, relatando a saga de sua família, sua linhagem materna e
paterna: fula.
Mas podemos nos perguntar o porquê do título, “o menino fula”? Encontramos esta
resposta no relato do autor quando ele nos diz que “os fulas estão presentes em todos os
lugares, mas sem domicílio em parte alguma” (BÂ, 2003, p.25). São pastores que conduzem
seus rebanhos por toda a África, tendo sido treinados a desde crianças a observar e escutar
para que assim pudessem perpetuar sob forma de narrativas as histórias que ouviam e desfiá-
las em suas minúcias. Tinham o hábito de contar os seus gados cotidianamente para não
perdê-los da mesma forma que faziam com as histórias. Dessa forma, cada vez que a
contavam guardavam na memória. Sendo assim, “Estar sempre à escuta” (BÂ, 2003.p.31) é
um dos muitos lemas fula. O autor deixa transparecer o seu orgulho pela sua linhagem em
vários momentos de sua narrativa. 55
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Em outra passagem do livro quando o autor fala de seu avô materno, percebemos a
rigorosidade do relato dos fatos é de uma precisão que se pode, por confirmações, reconstruir
os grandes acontecimentos dos séculos passados nos mínimos detalhes, principalmente no que
concebe os fatos históricos ou dos grandes homens que ilustraram a história africana. Nessa
passagem ele cita um diálogo entre o avô materno Pátê Poullo ao se apresentar a Hadji Omar,
pois o avô vai se converter ao Islã:
Eu me chamo Patê Poullo Diallo e sou um “fula vermelho”, um fula pastor da alta
brousse a fim de me liberar dei meu rebanho a meus irmãos. Eu era tão rico quanto
pode ser um fula. Portanto, não é para adquirir riquezas que vim juntar-me a ti, mas
apenas para responder a um apelo de Deus, porque um fula não seu rebanho para
procurar outra coisa. (...) Também não vim ao teu encontro para adquirir
conhecimento, pois neste mundo, nada pode me ensinar que eu não saiba. Só u um
silatigui, um iniciado fula. Conheço o visível e o invisível. Tenho, como se diz, o
ouvido da ‘brousse’: entendo a língua dos pássaros, leio o rastro dos pequenos
animais no chão e as manchas luminosas que o sol projeta através das folhagens; sei
interpretar o sussurro dos quatro grandes ventos e dos quatros ventos secundários,
assim como a passagem das nuvens através do espaço, porque para mim, eu não
posso abandoná-lo, e quem sabe te poderá ser útil? Nas viagens com teus
companheiros, eu poderia ‘falar pela brousse’ e guiar-te por entre suas armadilhas
(BÂ, 2003. p.28).
Percebemos essa interação homem-palavra muito presente neste enunciado, em que o
que está dito não precisa ser escrito, documentado, pois o que se preserva é o valor da palavra,
como também reconhecemos a presença da subjetividade, pois o narrador se coloca diante do
outro como sujeito enunciador. O discurso produzido por Patê Poullo, ao expressar o seu
pensamento, tem um convencimento que o tornou por assim dizer o “braço direito” de seu
futuro líder.
Na cultura fula existem os conselhos de família e de comunidade, e quando uma
pessoa como Patê Poullo, que segundo as narrativas do autor possui grande sabedoria e abdica
de suas funções, ele precisará do aval da família como também deixará o seu rebanho como
indenização. O que prevalece é na verdade a ancestralidade dentro dos princípios que definem 56
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a sabedoria, invocando a jurisprudência dos antepassados para a solução de problemas. No
entanto essas decisões não dependem da palavra de uma única pessoa. Este conselho sempre
passa pelo aval dos mais velhos que são os “homens de conhecimento”.
Sob esta ótica, segundo Vansina (1982, p. 74), “uma sociedade oral reconhece a fala
não como um meio de comunicação diária, mas também como um meio de preservação da
sabedoria dos ancestrais”. Portanto, percebe-se que há uma organização e um respeito pela
palavra final sinalizada por um ancião que é considerado um conhecedor em algum assunto
histórico ou tradicional.
A arte da memorização
Falar em memória é falar de uma faculdade humana que é responsável por nossas
lembranças. Quando falamos em memória podemos nos citar como exemplo. Qual de nós
consegue fazer uma seqüência de fatos ocorridos em qualquer fase de nossa vida com
minúcias de detalhes? Talvez algum episódio que tenha algum significado, porém, não
saberíamos dizer com as minúcias os detalhes dos momentos vividos, pois não temos a
habilidade de treinar a memória para tal finalidade. Recorremos então à escrita que se
organiza de modo totalmente diferente sob a forma de grafia constituindo um código.
Podemos dizer que utilizaríamos o procedimento normativo da gramática com todo o seu
caráter estético. Segundo Gnerre:
É bastante óbvio ou deveria ser, pelo menos, que nas culturas somente ou
principalmente orais, onde a comunicação verbal acontece sempre em presença dos
que estão comunicando, isto é, face a face, a escrita seja percebida (...) como algo
incompleto, parcial, pouco confiável, falsificável. (...) em geral, nas culturas orais a
escrita não vem a substituir a memória, no máximo ela é usada como um
complemento, um suporte visual de informações essencialmente memorizadas.
(GNERRE, 1985, p.52). 57
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Sendo assim, quando falamos de educação na sociedade africana percebemos que tais
práticas se distanciam dos costumes ocidentais, pois quando se diz uma comunicação face a
face estamos falando de expressividade, vivacidade, todo um movimento corporal,
tridimensional.
A memória africana, por não apoiar-se na escrita, tem uma grande capacidade de
fotografar os detalhes em sua plenitude. A narrativa funciona como a alavanca propulsora de
transmissão do conhecimento fazendo a ligação entre as gerações de um grupo social o que
torna a memorização mais fácil. A educação tradicional começa na família onde o pai, a mãe
ou as pessoas mais idosas são ao mesmo tempo mestres e educadores tendo como condição
básica a perpetuação da cultura e transmissão do conhecimento, já que o ensinamento não era
sistemático, pois “a própria vida era a educação” (BÂ, 1982, p. 26). Em muitos relatos do
protagonista é comum perceber a admiração por quem profere o aprendizado. Frases como
“aprendi com o meu mestre”, ou “com meu pai” são comuns em vários trechos da obra.
Para Silva (2008, p. 85), “toda memória é memória de alguém, de um indivíduo. Ela se
refere antes de tudo ao Eu, ao olhar que essa pessoa constrói a respeito de si mesma, da
identidade, portanto, de quem efetivamente recorda”. O personagem principal, Amkoulleu,
assim como muitas crianças de sua geração, é desde cedo treinado para escutar sem pressa e
repetidas vezes um fato ou acontecimento, ou seja, um exercício cotidiano de memória que
não é vista como um defeito.
Há um fato relatado pelo protagonista de um evento festivo, no qual ele se posiciona
de maneira silenciosa entre os adultos para ouvir, com a paciência característica da cultura
fula, um contador de história (griot). Segundo Bâ (2003), foi durante essas interações com os 58
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contadores de histórias que ele aprendeu mesmo antes de escrever a “armazenar tudo em sua
mente já bastante exercitada pela técnica de memorização auditiva da escola corânica” (BÂ,
2003, p.175). Esta era considerada a verdadeira escola viva, pois a partir de uma história
narrada pelo contador, ele podia ao mesmo tempo ensinar sobre vários assuntos tais como:
fenômenos da natureza, matemática, história. Enfim, um contador de história é, na África das
savanas, um verdadeiro professor.
Todo o contexto do livro se dá por meio desses relatos, pois ele narra fatos e
acontecimentos como se estivesse assistindo a um filme, reconstruindo cada cena
detalhadamente, “para descrever uma cena, só preciso revivê-la. E se uma história me foi
contada por alguém, minha memória não registra somente seu conteúdo, mas toda a cena.”
(BÂ, 2003, p. 175).
A palavra é considerada como uma dádiva divina segundo a tradição africana. É ela
quem regula a vida social e comunitária englobando aspectos do contexto de uma comunidade
como também os conceitos socioculturais transmitidos pelos anciões. Sempre que há algo
importante que acontece na vida do grupo como um casamento, iniciação da criança para a
vida adulta, a palavra estará presente.
 Considerando tais aspectos, pode-se dizer que neste contexto as pessoas se reúnem
para a palavra em todas as etapas importantes da vida social. Geralmente este poder de dar a
palavra final fica a critério de um conselho de família no que se refere a qualquer
problematização. Normalmente cabe aos anciãos, aos tradicionalista ou sábio mediar uma
situação problemática.
Podemos citar um acontecimento narrado pelo autor em relação ao primeiro 59
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casamento de seu pai Hampâté em um momento de fúria sua esposa Baya. Esta servia o jantar
para alguns amigos do marido, no entanto este estava ausente. Baya era estéril e neste dia em
um momento de total descontrole, provavelmente devido a sua situação, começou a proferir
insultos a seu marido como também à sogra. O amigo de Hampâté, Balewel a censurou pelas
palavras ofensivas contra o amigo e a mãe que já era falecida. Como esta continuou com os
insultos Balewel disse: “parta desta casa, eu a divorcio, eu a divorcio!” (BÂ, 2003, p.49).
Feito isso, todos os demais amigos que estavam presentes proferiram a mesma palavra. E
sendo assim, aconteceu o divorcio.
A proposta deste trabalho desde o seu principio tem como finalidade entender um
pouco mais como funcionam as sociedades de tradição oral, portanto em muitos relatos
devemos nos esquecer, de certo modo, o olhar ocidental na medida em que estamos
conhecendo outro contexto sociocultural. Nesse sentido, podemos estranhar como que um
amigo, no caso Balewel, tem a autoridade de com uma única palavra, divorciar o amigo sem
nem mesmo ele saber ou estar presente? Podemos entender este fato quando o autor afirma
que antigamente um amigo que fosse considerado fiel e digno, os dois estabeleciam uma
relação de confiança e se constituíam em uma única pessoa. No que se refere à tomada da
palavra, esta era colocada como verdade e aceita. Uma amizade que fosse considerada
verdadeira prevalecia e era colocada além do parentesco. Em decorrência disso, percebemos
que: “A fala pode criar a paz assim como pode destruí-la (...). Uma única palavra imprudente
pode desencadear uma guerra, do mesmo modo que um graveto em chamas pode provocar um
grande incêndio.” (Bâ, 1982, p.185), eis o motivo do divórcio.
 Na medida em que este discurso pregado por Bâ durante toda a narrativa de sua
autobiografia se coloca em defesa da tradição oral, percebe-se que o grande fator motivador se 60
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dá pela influencia sócio-histórica. Nesse sentido, é possível dizer que este é um livro na qual
as palavras se materializam e que segundo a tradição, não deve ser profanada em vão.
Conclusão
Desnaturalizar a razão e despir-se do preconceito em relação à tradição oral foi o que
se considerou para a materialização deste trabalho. Não se pretende descaracterizar a função
da escrita, este nunca foi o objetivo desta leitura, mas evidenciar muitos aspectos que nos
remetem a refletir como criamos conceitos sem nem mesmo conhecer. É o “olhar que lê sem
ver” (CALDAS, 1999, p. 29)
Após analisar as narrativas de Bâ, pode-se dizer que esta é uma obra que não se faz a
partir de uma única leitura, pois há sempre algo a mais para se descobrir, refletir e conhecer.
Algo que vai além da forma fragmentada e destorcida que a história nos apresenta.
 Na medida em que somos seres produtores e criadores de diferentes culturas, temos
que compreender os diversos sistemas e grupos sociais respeitando os seus modos de vida e
os seus saberes, que são muitos.
Esta visão é necessária no sentido de se desnudar do olhar eurocêntrico a nós
atribuído, que valida só o que por ele é produzido com todo o seu discurso ideológico
enraizado nas instituições, principalmente na Educação, pois para esta, é muito difícil
reconhecer os aspectos positivos dos povos de tradição oral, já que são definidas como
culturas sem tradição escrita, portanto, desconsiderando a leitura de mundo que esses povos
possuem.
Considerando tais aspectos, entendemos que todo conhecimento é valido na medida 61
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em que a educação não pode se passar por verdade absoluta. Assim, finalizamos com Bâ
(2003, p. 175):
a escrita é uma coisa, e o saber é outra. A escrita é a fotografia do saber, mas não o
saber em si. O saber é uma luz que existe no homem. É a herança de tudo aquilo que
nossos ancestrais puderam conhecer e que se encontra latente em tudo o que nos
transmitiram, assim como o baobá já existe em potencial em sua mente.
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Um comentário:

  1. Fiquei muito feliz com a publicação de meu artigo junto com a professora Márcia que me orientou na minha pós- graduação. è o reconhecimento de um trabalho sério e reflexivo sobre um novo olhar em relação à cultura africana.

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